terça-feira, novembro 28, 2006

O porquê de não escrever...

Não tenho escrito por uma simples razão. Tenho o coração descascado em fatias pequenas por facas enferrujadas. Está aberto um buraco no meu peito infectado pelo qual os anjos me abandonam voando para outros céus escuros a meu olhar, onde pairam nuvens de sentimentos e fadas de olhos vermelhos em chamas que me estrangulam nesta sala negra. Aqui choram-se lágrimas de sangue.
Lentamente desfaleço e entro no coma induzido pela minha inspiração. As melhoras…
Cravam as presas na minha carne, e eu vejo-a flutuar. São pedaços de mim que te levam daqui. Fico eu e o branco laminado do anoitecer dos meus ossos no lusco-fusco. Brevemente (ou não) a carne será reposta. Pouco a pouco. Trazendo de volta a minha inspiração. Até lá…

quarta-feira, novembro 15, 2006

Auto-retrato (sim, sou eu...)

Sombras aos pedaços que outrora formaram um eu riem desalmadamente. Fragmentos de mim que tento recolher para formar um castelo humano. Aqui não faço nada, por isso volto para o meu mundo de desespero onde finalmente dou liberdade à minha morbidez calada. Remeto-me ao silêncio de quem tem tanto para dizer e ninguém a quem o dizer. Compreenderás a minha alma?
Saudades dos vivos, que não vejo hà muito. Não sinto falta dos meus defuntos, vê-los-ei em breve.
Cada vez que adormeço e acordo no dia seguinte apercebo-me que morri durante a noite, mas apenas um pedaço. E então, pedaço após pedaço, após pedaço… durmo. Acordo descansado da morte e cansado da vida.
Farrapos enxovalhados, do bonito lençol que fui outrora, já não bailam ao vento nem brilham ao sol. Num branco escuro carregado de incertezas, em que a única certeza é a dúvida. A dúvida que nos mantém no trilho deste feliz acaso que é a vida. Vida? E depois da vida? E depois de abandonares a embalagem onde te transportas para todo o lado? Espero-te no meu mundo onde dançaremos no baile de surdos. Onde todos vivem na casa assombrada por Deus e por todos os que o julgaram um dia ser. Foi Deus que me criou. Para gáudio próprio. Amamentou-me e fez-me forte. Cresci. E fez-me assim porque são estas as bestas que dão mais gozo abater. Mas são estas as bestas que mais facilmente se viram contra o dono. Quem terá criado Deus? Amar-nos-á ou nutre por nós um ódio visceral?
Abandonei a cruz que carrego e peguei na espada, com a qual disseco e decomponho em troços pequenos tudo dentro de mim e à minha volta. Observo e vivo amores esquizofrénicos com os quais me regozijo. Partidos aos bocados são mais fáceis de engolir. Assim te parto, assim te degusto.
Sem o peso da cruz parto em busca. Procuro-me a mim. Vasculho-me e não me encontro. Grito por socorro, estou cada vez mais perdido. Encontro-te e perdemo-nos juntos. A miséria adora companhia. E eu adoro-te a ti. Sou a tua miséria e tu a minha companhia. Dá-me a mão e vamos juntos conhecer este abismo lindo onde nunca ninguém ousou entrar. Vamos buscar incertezas e dúvidas que a morte esclarecerá em breve. Tudo é oco e fabricado em vão. Em vão vives, fragilmente e docemente, uma vida dura e amarga. Eu não vivo em vão. Tenho uma missão que me foi endossada que ainda estou para descobrir qual é. Senão porque outra razão aqui estaria? Vivendo vaziamente? Há algo aí por fora que me espera senão já teria ido embora há muito tempo. Nem que seja salvar o mundo de mim próprio. E quem me salva a mim de mim próprio? Estarei condenado a esta agonia de viver para sempre comigo? Uma vida de incerteza, de vazio, de ideias levadas na brisa que um dia me atravessou e me esventrou de um sentido claro e pertinente para mim próprio? Brisas vão, brisas vêm. Há-de chegar a brisa que me encha novamente. Já avisto o pó que levanta, ao fundo, no ar. Depois de experimentar a sensação de sufocar ou de ser enterrado vivo por esta tempestade sei que finalmente saberei o ando aqui a fazer, e qual o teu papel no meio disto tudo. Até lá morremos juntos, pedaço após pedaço, após pedaço… até que algo nos separe!

Novembro de 2006

quarta-feira, novembro 08, 2006

Cinzas e pó

Devolvo-me ao sítio de onde vim.
Devolvo-me às cinzas e pó. Sou apenas cinzas e pó.
Arde uma vela que tenta iluminar o cinzento da alma e tudo em redor.
Ao redor de mim, ao redor de ti.
Tudo é pó.
As miragens que observas todos os dias são feitas para te enganar.
Ilusões de que tudo é belo e perfeito.
Nó fim lá nos encontraremos, cobertos de pó… feitos em cinza.
A verdade esconde-se na eternidade. É um segredo que todos descobriremos.
Continua a vela a arder,
Num esforço brutal, por entre tempestades de vidas presas por um fio.
Sou assim. Vivo por tudo o que dei e por tudo o que esperei, proveniente de desejos inacabados, que sobrevivem no meu interior habitado por demónios que devoram tudo em redor.
Ao redor de mim, ao redor de ti.
Tudo é pó.
Quando a vela se apagar, resta-me a esperança de que permaneço dentro de ti. No calor da tua vela. Que sorrias quando vires a minha miragem. Que grites mudamente, o mais alto que puderes, dentro de ti o meu nome. Que suspires de alívio quando a minha voz te embala enquanto dormes.
Só assim continuarei a arder, por ti…
Dentro de ti sou o ser mais belo que a natureza criou.
Sei, e por isso fico aliviado, que assim serei perpetuado e para sempre mais do que simples cinzas e pó.
Aos que amei e hoje não estão ao pé de mim...
Novembro de 2006

segunda-feira, novembro 06, 2006

Cadáveres ao amanhecer (2ª Parte)

Minutos depois há um som que alerta a equipa. O choro de uma criança ecoa na floresta. Rapidamente todos acorrem ao local. Sobreviventes?
Um rapaz segurava um bebé. Ao ver os homens que correram na sua direcção também ele chorou e gritou.
A expedição partiu sem explicação possível para o que se tinha sucedido. O jovem foi tranquilizado com drogas e partiu também.
Não saía do canto do quarto, ninguém lhe arrancava uma palavra. As roupas que lhe davam para vestir eram rapidamente arrancadas. Houve uma psicóloga que consegui alguma afinidade com o rapaz. Uma jovem licenciada que ali estagiava, também ela de origem índia, foi a primeira a arrancar algumas palavras, ainda que tímidas à criança. «O meu irmão, quero ver o meu irmão! A minha mãe passou-mo para os braços!», disse. O seu irmão estava noutra ala do hospital, mas como se pensava que podia facilitar a relação paciente/terapeuta era-lhe permitido visitar o irmão. Quando chegava perto dele dizia «estamos vivos, conseguimos… nunca te vou deixar!»
Um mês depois dá-se a revelação:
- Tudo começou depois do homem branco lá ter ido. Diziam que queriam falar com o chefe da aldeia. – Disse o rapaz – Chegaram nos seus carros, todos bem vestidos e discutiram com o chefe, Águia Que Dança.
- Que queriam eles? – pergunta a psicóloga.
- Ninguém soube, o chefe apenas disse que a nossa história e os nossos valores pertencem ao todo poderoso e que nunca ninguém iria fazer com que Ele abdicasse deles.
- E as mortes? Tu achas que foi o homem branco?
- Não. – Respondeu secamente.
- Tens a certeza?
- Tenho. Sei quem matou o meu pai e o meu tio Águia Que Caminha.
- Quem? – Perguntou surpreendida a psicóloga.
- Houve um dia que a minha mãe veio ter comigo, levou-me até um sítio na floresta, deu-me o meu irmão e disse «fica aqui, eu vou matar o teu tio porque ele matou o teu pai e agora quer matar-nos a nós», puxou de uma catana e nunca mais a vi… - E acrescentou, - O pajem dizia que era a natureza que nos levava, mas a nossa própria natureza…
Hoje, 30 anos depois, ainda não se sabe o que se passou. Apenas se tem a certeza que as primeiras mortes foram provocadas pelos homens brancos. O instinto selvagem do ser humano, o facto de estarem confinados àquele espaço e a desconfiança fez o resto…
Nunca iremos saber ao certo o que somos quando nascemos, se somos animais naturalmente selvagens e agressivos ou sociáveis e afáveis. Somos apenas o que a sociedade nos impõe. Esta tribo ficou a saber.
Mas quem foram os verdadeiros culpados?
Hoje em dia, no local do aldeamento, encontra-se um complexo turístico.
Mas sem cadáveres ao amanhecer.
Fim?
Novembro de 2006